galeria O dia que encontrei Clarice em Nova Iorque

31 de Maio 2010

             A Clarice escrevia utopia sobre a realidade; ela dizia que a realidade era utopia. Então, a Clarice, escrevia realidade. Um dia a Clarice veio para Nova Iorque ( porque sua mãe queria).

            Ela deixou para trás as tardes pelo Recife, cruzando o Capiberibe e admirando os Flamboyants floridos, esparramados sobre as águas do rio-mar. Os Sábados na “Livro 7” do Tarcísio, onde os poetas e artistas iam para tomar umas e fumar outros, se admirar e conversar. Lá no aeroporto (Internacional) dos Guararapes, Clarice embarcou num voo que iria lhe deixar para trás. Tudo eram sonhos, mas um sonho era a realidade.

            Ela estava cansada de se escrever, mas ela (quase que) sabia que na realidade, não havia nada mais. Perda de tempo, tudo é, a gente é que se muda.

           

            Mas a Clarice decidiu fazer essa desventura; afinal, ficar só em Recife ( e Olinda), mesmo que emocionante pelas belezas, ainda assim não trazia aquela qualidade de dúvidas da qual ela tanto precisava – só para se acertar. A Clarice estava cansada de estar certa; ela queria duvidar, sentir ; entender aquilo tudo que o povo estava a falar sobre uma terra distante, cheia de possibilidades (financeiras, todos  diziam)  mas que para ela era somente uma opção.

            Ficar ou ir.

                 Ela já não estava tão moça; seus 47 “batiam no casco”, como se dizia lá pelo Nordeste, e ela precisava criar. Não que ela precisasse de inspiração; a Clarice sabia o que escrever, como e quando – bastava uma idéia lhe intrigar e pronto, lá estava ela, de caneta e papel  ( até mesmo de embrulho) na mão, escrevendo, rabiscando, fazendo doer aquilo de que ela tanto precisava: Inspiração.

            Para a Clarice, escrever era respirar. A gente pode até segurar o ar por algum tempo; mas, de repente, os pulmões se movimentam numa explosão para dentro ( chamam isso de implosão) e buscam todo o ar (leia-se oxigênio) que puderem encontrar. Tem que ter um papel, uma caneta, um toco de lápis.

Tem que se expressar.

Clarice tinha ( muito) poucas amigas; ela vivia a solidão. Assim como quem fuma ou bebe, ela tinha que escrever, e ninguém pode fazer isso conversando, ou tendo que prestar atenção a algum vizinho falante. Ela tinha que se esquecer.

Tava cansada de tanto se explicar; eram os políticos, os artistas políticos, a política polícia, o pagode e as palavras tortas que tentavam lhe acertar como se fosse um alvo. A Clarice sabia que nada ela podia mudar; tudo era, porquê tudo é. Como num faz-de-conta, a vida seguia em frente, sem saber que mais adiante haveria um trem, um “subway” para tomar, se quisesse chegar em algum lugar…

Clarice sabia que aonde ela fosse, o que mais ela podia carregar era seu pensamento, sua alma vivida flutuando no ar.

Ela sabia que ser, fazer e acontecer são puramente frutos de um mesmo pensamento. A vida não nos pertence. A gente não é nada, mas mesmo assim, gente tenta fazer, ser e acontecer.

Por isso muitos matam e morrem ( são matados).

A grande cidade cinza, de concreto e madeira ( tantos incêndios), se postou à sua frente; ela de um lado, a outra de outro. Com um giz ela podia desenhar o contorno da cidade. Ela não o podia preencher.

 

 

 

 

 

 

 

 

            Clarice resolveu ficar. Não por causa da mãe, não  por causa do lugar; ela estava alí por alguma razão, ela sabia, mas não podia falar ( e quem lhe haveria de escutar?).

            Tempo, espaço e lugar; qual a diferença?

            A vida, como ela sabia, a qualquer momento poderia se acabar; para que então se apressar? Tentar achar respostas para perguntas que ninguém queria saber as respostas? Aliás, se pensar bem direitinho, quem é que estava mesmo perguntando ???

            Então nesta cidade a Clarice pôde se encontrar. Ela, que nada queria, encontrou tempo e espaço para se dialogar. Porquê aonde nada (se) ela podia, ela podia ter tempo, podia pensar.

            Quando estava no apartamento ( de sua mãe), ela estava sozinha; quando descia para fumar, ela também estava só.

            Um dia, passeando pelo Central Park, eu vi aquela mulher bonita, e eu pensei:

-“De onde é que eu a conheço…?”

Seu rosto único, inconfundίvel, me lembrou outras horas em Pernambuco, algumas pessoas…mas eu não sabia quem ela era. Quando me dei conta de quem estava ali na minha frente, meu coração palpitou, minha mão se estendeu para minha bolsa para pegar a minha máquina fotográfica, mas um olhar me paralisou; aqueles olhos amendoados ( quem é que diz que é russo? podia ser cigano, era mais acertado) me disse expressamente:

-“você veio aqui para viver ou fotografar?”

            Sobre uma perna cruzada sobre a outra ela escrevia; o longo casaco cinza de ( um tipo de ) flanela lhe caia pelos lados, aberto, enquanto ela, sentada no banco da praça, escrevia.

            Ela estava ali para não estar; ela estava ali, mas de fato, ela mesma não se sabia. Quem era eu para lhe incomodar???

Solidão é um dom, uma dor de se acabar; a muralha que cercava a Clarice não tinha vista para o alto nem para os lados. A Clarice vibrava sua força, sua energia, mas eu, pobre de mim, apenas sua fã, nada  era, embora  tudo pudesse ter sido.   

Afinal, eu também, como a Clarice, fazia poesia com minhas fotografias. Não que eu fosse pretenciosa, nada disso; apenas que de vez em quando eu também vejo coisas que ninguém mais vê. Como as intricadas tramas de uma folha…ou a sombra de uma peneira.

Eu gostaria muito de ter tido a possibiliadade de poder falar com ela, de ouvir a sua voz que, quase com certeza, sei que soa grave, sem ser rude, profunda, sem ser rouca. Nobre, como um sotaque Inglês para o Americano.

Perdi muitas oportunidades na vida de encontrar pessoas  – para  mim – ricas e famosas; cantores, escritores, pintores, tanto faz; eu não estava mesmo destinada a encontrá-los.

Eu perdi a oportunidade de falar com ela; tem outras oportunidades que eu também perdi e perco ainda. Nesta cidade de Nova Iorque a gente se espalha, se aglomera , mas tudo permanece do mesmo jeito. Só.

Eu sei que existem muitas “Clarices” por aí; porquê a solidão é uma alma velha, não se deteriora.

Então, embora eu nunca tenha de fato falado com ela ( ou com a Nina Simone por exemplo), eu ainda sinto este vazio no ar, este não sei-o-quê de quase-que-aconteceu – mas a gente deixou  passar, e eu resolvi falar.

Me perdoem os puristas, minimalistas, niilistas, e outros “istas”mais porquê estou produzindo palavras, sentimentos, “um grito parado no ar”…

Eu ouvi dizer que ela se mudou, foi para a Califórnia. Tinha um livro para escrever, e ela precisava de “espaço” – por que tempo ela já tinha demais.

Lá ela encontrou uma turma de Capoeira,  ouvia feliz o berimbau tocando, e nas tarde de São Francisco ela se lembrava da tapioca com café no alto da Sé, a de Olinda, aonde ela conversava “potocas” com dona Maria, enquanto comia, vendo o pôr-do-sol intensificando o perfil da cidade do Recife lá embaixo.

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Lá ela encontrou uma turma de Capoeira, ouvia feliz o berimbau tocando…

 

Mal sabia ela que eu também pensava nisso; o frio ainda presente – de um inverno que na realidade nunca saia do chão – produzia em seus braços ( e nas pernas também),  movimentos incontroláveis como um motor de avião. Bruuuuuum; Zuuuuuuuuuuuum…a terra escrevia pelas suas próprias mãos, a Clarice sabia, mas o que ela podia fazer?

Eu perdi a Clarice de vista; eu continuei fotografando. Não sei dizer se ela se foi ou se ficou. Nunca mais a vi. Em noites de lua – desde que haja uma -, eu vejo que o tempo passou, mas também vejo que existe ainda um tempo.

A Clarice me inspirou; eu sentei e escrevi o que nem sabia –  sou uma péssima datilógrafa, é um tormento. Não sou rápida com o teclado,e, além do mais, depois de tê-la encontrado naquela tarde, depois de ter ouvido pessoas falando dela como se a conhecessem, eu não podia ficar calada. Afinal, fui eu quem a encontrou sentada num banco da praça ( do Central Park) e olhei no seu olhar.

Fui para casa, pensei no que ( não) aconteceu, me senti covarde mas ao mesmo tempo, prazerosa, me senti completa; não é todo o dia que a gente tem a sorte de ver uma princesa dessas, muito menos uma rainha.            

O cheiro da bosta dos cavalos não lhe afligia; o burburinho ( como de uma fossa subindo à superfície) não parecia lhe causar nenhum efeito. A  Clarice, sentada no seu banco de praça, simplesmente escrevia…Ah…quanto eu não queria ter tido a oportunidade de falar com ela…!

Será que ela me viu? será que ela me ouviu? Nada sei dizer. Só sei que um dia vou ler seu livro, vou saber que ela pensou em alguém – McAdenia? Que nome era daria? porquê ali, no mesmo banco de praça, alguém também se sentaria e iria conversar com um outro alguém, e ela iria imaginar o que estava ouvindo, porquê na realidade, ficção era o que ela vivia; realidade, estava para se imaginar.

 

Maria Casotti@

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